- Olá Sheila.

- Olá Karina.

- Onde é que andaste esta manhã? Nem te vi por aí nem nada.

- Estava ocupada mas agora o taxímetro da cona já está verde.

- O meu tem estado assim o dia todo. Hoje ninguém me pega. Isto nota-se mesmo que estamos em crise.

- Estes cortes governamentais têm levado a uma retracção acentuada no consumo e isso reflecte-se no dia-a-dia. Cada vez faço menos broches. Anal então é só para dias de festa.

- Sem dúvida filha. Isto para não falar no impasse em relação à aprovação do Orçamento de Estado. Que só tem é agravado os juros da dívida pública portuguesa.

- Ah pois. As pessoas não se importam de comprometer a qualidade e optam por rumar a outras paragens como as velhas gordas da Zona Industrial. Não tem sequer uma boa relação qualidade-preço mas é sem dúvida mais em conta.

- E o FMI? Não tarda muito está aí a entrar em força.

- Não duvides. De rompante, que nem o caralho de um ressabiado.

- Ah sim, e dos grandes, pois.

- Olha, sabes o que te digo? Isto mais do que nos afectar a nós, afecta as gerações vindouras. Essas miúdas novas que por aí chegam qualquer dia não têm uma esquina onde atacar.

- Nem a actual legislação de trabalho está adequada. Se por um lado é dotada de uma inflexibilização desesperante por outro é precária e inconstante. Não transmite segurança nem possibilidades de progressão.

- Amanhã reúne-se o Conselho de Estado.

- De lá já papei quatro.

- E eu três mas isso agora é irrelevante. O que conta é que não vejo de que forma podem resolver este imbróglio. Se nem a pressão dos mercados e da opinião pública tem surtido efeito de que valerá agora esta reunião de Senadores?

- Não tenho resposta para ti. Só sei que os principais indicadores macroeconómicos não são favoráveis e a OCDE não está a ver com bons olhos nada disto.

- E é compreensível, a falta de entendimento entre o partido do Governo e o principal partido da Oposição está a denegrir a imagem do nosso país.

- O que é que se há-de fazer? Eles é que mandam.

- Podes crer. Olha vou até ali ao carro do Adérito que já sei que ele gosta de um bom bico antes de voltar para o trabalho.

- Vai lá vai. E eu vou andando que já são horas de almoço e ainda nem pus nada quente na boca.

- Olha, eu vou pôr agora. Beijinhos.

- Beijinhos, miga. Bom trabalho.

"O objectivo da vida é o nosso desenvolvimento pessoal. Compreender perfeitamente a nossa natureza, é para isso que estamos cá neste mundo. Hoje as pessoas temem-se a si próprias. Esqueceram o mais nobre de todos os deveres: o dever que cada um tem para consigo mesmo. É certo que não deixam de ser caritativos. Dão de comer aos que têm fome e vestem os pobres. Mas as suas almas andam famintas e nuas. A coragem desapareceu da nossa raça. Ou talvez nunca a tivéssemos tido. O temor da sociedade, que é a base da moral, o temor de Deus, que é o segredo da religião - eis as duas coisas que nos governam.

E, contudo (...) se um homem devesse viver a sua vida em toda a plenitude, dar forma a todos os sentimentos, expressão a todos os pensamentos, realidade a todos os sonhos, creio que o mundo ganharia um novo impulso de alegria que nos levaria a esquecer todos os males do medievalismo e a regressar ao ideal helénico. Talvez mesmo a algo mais refinado e mais rico que o ideal helénico. Mas o mais ousado de todos nós teme-se a si mesmo. O selvagem mutilado que nós somos sobrevive tragicamente na auto-rejeição que frustra as nossas vidas. Somos punidos pelas nossas rejeições. Todo o impulso que esforçadamente asfixiamos fica a fermentar no nosso espírito, e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e mais não precisa, pois a acção é um processo de purificação. E nada fica, a não ser a lembrança de um prazer, ou o luxo de um pesar. Ceder a uma tentação é a única maneira de nos libertarmos dela. Se lhe resistimos, a alma enlanguesce, adoece com as saudades de tudo o que a si mesma proíbe, e de desejo por tudo o que as suas leis monstruosas converteram em monstruosidade e ilegalidade. Diz-se que as grandes realizações deste mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e só aí, que ocorrem os grandes erros do mundo. E até o senhor, Mr. Gray, que se encontra na flor da juventude, viveu paixões que o atemorizaram, teve pensamentos que o apavoraram e, quer acordado, quer a dormir, teve sonhos tais, que a sua simples lembrança, fariam corar de vergonha...

- Não continue, por favor! - balbuciou Dorian Gray -, Sinto-me confuso. Nem sei que dizer. Há decerto uma resposta adequada, eu é que a não consigo encontrar. Não diga nada. Deixe-me pensar Ou, mais exactamente, deixe-me tentar não pensar.

Durante cerca de dez minutos, permaneceu imóvel, os lábios entreabertos e um brilho estranho no olhar. Tinha uma vaga percepção de que dentro de si actuavam influências inteiramente novas. E, todavia, pareciam ter surgido de dentro de si mesmo. As poucas palavras que o amigo de Basil lhe dirigira - palavras proferidas por acaso, sem dúvida, e intencionalmente paradoxais - tinham feito vibrar uma corda secreta, até então nunca tocada, que sentia agora latejar ao ritmo de inexplicáveis pulsações. Também a música o perturbava assim, e muitas vezes o tinha emocionado. Mas a música não recorria às palavras. Criava em nós, não um novo mundo, mas sim outro caos. As palavras, simples palavras... como podiam ser terríveis! Como eram nítidas, e vívidas, e cruéis! Não conseguíamos fugir-lhes. E, no entanto, quanta magia subtil possuíam! Pareciam capazes de dar forma plástica a coisas informes e de possuir música própria tão suave como a da viola e do alaúde. Meras palavras! Haveria alguma coisa tão real como as palavras? Haviam ocorrido coisas durante a sua meninice que, nesse tempo, não entendera. Compreendia-as agora. A vida surgia-lhe, de repente, com um colorido flamejante. Tinha a sensação de ter caminhado sobre o fogo. Por que não soubera antes?"

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray

Não percebo esta obsessão com os recém-nascidos. O que é que têm de especial? Todos os dias nascem milhões e milhões de seres por todo o mundo. Porque carga de água havemos de dar relevância a um em particular? E não estou só a falar de seres humanos. A todo o momento surgem recém-nascidos das mais variadas formas e espécies. É a coisa mais normal do mundo.

“Ah, o milagre da vida”. Mas qual milagre, caralho? Milagre é o José Mourinho ter, com o Inter de Milão, ganho, na época passada, todas as provas em que esteve envolvido. Isso sim é digno de relevância. Agora existir mais uma Susana ou um Pedro neste mundo não tem importância nenhuma. É mais um. Que raio de diferença pode fazer?

E depois há a velha. Há sempre uma velha em qualquer acontecimento em Portugal, já repararam? Neste caso é aquele ser que se põe a olhar para o puto através do vidro na maternidade. Como quem tenta descortinar numa montra o preço de uns sapatos na época de saldos. Esta velha é uma familiar qualquer do infeliz que acabou de vir ao mundo. Habitualmente uma avó mas também pode ser uma tia ou a vizinha do lado. Qualquer coisa serve, desde que seja velha. Velha e a cagar completamente para a desgraçada da mãe. Aquela que passou as últimas doze horas em plena agonia e sofrimento. A quem agora ninguém liga pois já pariu o rebento e é este o centro das atenções.

A velha tem uma função muito importante. É a ela que cabe o mais fidedigno teste de paternidade. Após visualizar brevemente e de forma vaga o recém-nascido, este mono recita pérolas como: “É mesmo parecido com o avô”, “Tem as orelhas da mãe”, “O nariz é do pai” e mais uma série de comparações trazendo à baila pessoas que já faleceram à pelo menos duas décadas e das quais ninguém se lembra. Mas como é que ela consegue ver aquilo? Que treta do caralho. É um recém-nascido, eles são todos iguais. Feios que dói e com um aspecto doente. Ali, embrulhados numa mortalha, numa ala da maternidade, vermelhos que nem um tomate e carecas com apenas uns pintelhos mal semeados na sua gigante e disforme cabeça.

Enfim, sejam bem vindos a este mundo.

Chupa-mos

Degusta-mos

Electrifica-mos

Ora para eles como se de santos se tratassem e precisasses de ser salva de todos os pecados de uma vida

Saboreia-mos

Acarinha-mos

Abocanha-mos

Aninha-te neles procurando conforto e aconchego das agruras da vida

Massaja-mo

Descontrai-mo

Tranquiliza-mo

Imerge no seu conteúdo e une-te na sua natureza

Aquece-mo

Trauteia-mo

Regurgita-mo

Estende ao longo do teu rosto a vela do meu mastro

Afunda-te

Reconforta-te

Presenteia-te

Guia o teu desejo pelos caminhos do meu mar e procura o descanso no meu regaço

Acredito convictamente que todos os nomes masculinos começados pela letra “A” são nomes de homem. Armindo, Adolfo, Antunes, Atilio, Agostinho. Mas homens à séria entenda-se. Não daqueles como o Ney Matogrosso que afirmam serem homens com “H” e depois andam em palco vestidos de Sevilhanas a cantar com a voz esganiçada. Adalberto, Aurélio, Augusto, Aníbal, Atila. Nem daqueles nomes enconados tipo: Martim, Ruben, Cláudio, Ivo, Serafim, Diniz ou Fábio. Nada disso. Estou a falar de nomes másculos. Asdrúbal, Alberto, Abel, Arménio, Álvaro. Que apontem para largadas de touros e churrascadas de porco preto. Artur, Afonso, Anselmo, Abílio, Arnaldo. Nomes que associemos a dirigentes desportivos e autarcas corruptos. Arlindo, António, Anastácio, Adérito, Avelino. A mecânicos e militares de carreira. Anacleto, Amadeu, Albano, Alcides, Aleixo. A estucadores, canalizadores e todas as outras actividades que envolvam andar imundo um dia inteiro. Alfredo, Alípio, Amândio, Amílcar, Américo.

Dou graças a Deus por um dos meus apelidos ser Almeida. Tenho dito.

Aparenta-me ser cada vez mais válido apresentar no curriculum vitae “demência” como aptidão profissional. Nos dias de hoje esta aprazível característica revela-se uma mais-valia indispensável num bom colaborador. Pois permite uma adaptação mais fácil ao mercado de trabalho e a toda a sociedade envolvente.

Uma pessoa sã e equilibrada terá sempre tendência a enfrentar dificuldades de vária ordem. Tal como as pessoas de forte ética e consciência sentirão que a sua personalidade facilmente entrará em conflito com o meio ambiente. Um tresloucado não sofrerá de tais males pois o seu estado de espírito é mais adequado a este habitat.

Vejo um futuro onde esquizofrénicos, bipolares em último grau, obsessivos-compulsivos, neuróticos e adeptos de Wrestling estejam à frente do mundo empresarial e em todos os outros sectores da sociedade. Nas áreas de investigação, nos centros de ensino e aprendizagem, no sistema nacional de Saúde, nas Forças Militares e nas roulotes de horário pós-laboral. Quando este dia chegar decerto que tudo nos parecerá bem mais lógico e nos sentiremos mais felizes e integrados na sociedade.

É este o caminho a seguir. Em breve todos faremos parte desta elite intelectual e ainda bem. Pois se não os conseguimos vencer, juntemo-nos a eles.

Penso que a minha droga de eleição seria a heroína. E digo seria porque estou a falar de cor. Nunca senti o seu pulsar nas minhas veias mas por aquilo que sempre ouvi dizer acho que tem tudo a ver comigo. E temos que confiar naquilo que as pessoas nos dizem. Especialmente em heroinómanos. Alguém que dedica a vida de forma tão afincada a uma causa como esta só pode ser uma pessoa séria.

A única razão porque não enveredo por esta carreira profissional prende-se por questões de imagem. Como diziam os Dandy Warhols à uns anos, “Nunca imaginei que te tornasses um carocho pois a heroína está tão fora de moda”. E meus caros, é certo dizer que mais de uma década depois deste comentário a imagem deste opiáceo não tem tido grandes melhorias.

Longe vão os tempos em que era fixe andar metido no cavalo. Era d’homem andar a chutar na veia. Uma afirmação de seriedade perante tudo e todos. Uma renuncia completa às trivialidades da vida e a tudo o mais associado a esta. Uma coisa linda portanto.

Mas esse tempo já lá vai. Agora, para além do decréscimo acentuado no seu consumo, assistimos à degradação de uma cultura que fazia tão parte de nós. Tudo bem que agora existem meta-afetaminas e todo o tipo de drogas de laboratório. Mas não é a mesma coisa. Cavalo é o cavalo. Um produto tradicional que destruiu famílias e gerações e como tal não se devia perder.

O degredo andará cá sempre, ao menos que tenha mística e uma boa banda sonora de forma a dar alma a quem a vai perder em breve.