Achar que podemos controlar o mundo que nos rodeia é uma mera ilusão. Está ao nível do Pai Natal, das aparições da Nossa Senhora de Fátima ou que se bebermos vinho tinto e comermos melancia, esta última se transforma em cortiça no nosso estômago. E é psicótico. O desejo de controlo e que tudo corra como nós queremos não é mais que medo disfarçado de ambição e organização. É na aceitação da imprevisibilidade que o campo de todas as possibilidades se abre. Se tudo corresse exactamente como prevíamos, para além de ser uma estupada de primeira, nunca experienciaríamos nada de novo e estimulante.

Claro que isto não deve ser confundido com o total desprezo pelo futuro, a ausência de objectivos ou o não desejar ardentemente que ainda no nosso tempo de vida o Benfica volte a erguer a taça da Liga dos Campeões. É apenas a aceitação das coisas como elas são com a atitude aplicada ao momento presente. E que seja lá aquilo que aí venha que o trataremos da melhor forma que soubermos. Seja bom ou seja mau. Não vale a pena preocuparmos, só vale a pena agirmos e responsabilizarmo-nos. Não sejamos positivos nem negativos, eufóricos ou deprimidos. Sejamos apenas verdadeiramente nós próprios.

Já imaginaram como será o dia em que vão ser internados num hospital psiquiátrico? Eu já. E vocês também deviam. É que estas coisas acontecem sempre quando menos se espera. Não pensem que é só aos outros. Há que estar prevenido.

Visto que considero tal cenário como um acontecimento inevitável, mais vale estar preparado para ele pois quero que seja um dia especial. Não é todos os dias que um grupo de enfermeiros nos serve de chofer. Oferecendo-nos, de forma mais ou menos convencional, a mais recente moda de pronto-a-vestir, nova estação, na forma de um elegante colete-de-forças.

Quero que seja um acontecimento único. Dêem-me a fama e o proveito. Não quero dar luta, quero dar espectáculo. De forma a que o pessoal médico se recorde deste dia de trabalho para sempre. Que anos após a reforma contem aos netos na noite de Consoada “Olha netinho, o mais maluco de todos os malucos que me calharam foi…” e segue a história, tendo-me a mim como protagonista.

Mas como o fazer? Como ser um marco nos anais da demência? Primeiro que tudo começo na caralhada. Eu sei que não é original mas o que seria de um internamento em psiquiatria sem um chorrilho de palavrões? Não serei o senil anestesiado a quem fazem tudo o que querem. E para provar isso qualquer vocábulo que saia da minha boca tem de ser profundamente ofensivo. Sem deixar ninguém de fora. Dos enfermeiros ao condutor da ambulância, dos médicos ao pessoal auxiliar, dos transeuntes aos meus amigos imaginários, todos levarão elogios e considerações do mais alto nível. Verbalizando a um nível ensurdecedor enquanto perdigotos dos mais variados tamanhos são projectados da minha boca.

Espicaçar o condutor da ambulância é outro dos meus objectivos. Começarei pelo “coninhas” passando pelo “corno manso” e só abrandarei o ritmo dos insultos quando aquele pobre coitado acelerar de tal maneira de raiva que nos despistemos. E aí irei rir a bandeiras despregadas. Enquanto o carro se despenha em chamas ravina a baixo… Eh pá assim também não pode ser. Assim morremos todos. Sou doido mas não sou parvo. Pronto, que se lixe o condutor. Deixo o homem descansado. Ao fim de contas ele vai a conduzir.

Em vez disso começo a dizer com um ar esgazeado que estou a ter visões sobre o futuro das pessoas que me levarem. Em que, seja em que contexto for, acabam sempre doentes, numa prisão a levar no cu de manhã à noite. Só para aprenderem a não se meterem comigo. Vão-se borrar de medo. Há quem amaldiçoe os outros mas isso está em desuso e já não assusta ninguém. Eu prefiro fazer previsões de sodomizações violentas. Isso sim, isso mete medo.

Bom, tenho que ir. Estão a tocar à porta e ambulância está lá em baixo à minha espera. Desejem-me sorte.

Que bonito. Sempre adorei esta expressão. Não sei porquê mas tem qualquer coisa de especial. Apela à imagem. Não a de um cu a partir cascalho. Até porque isso seria de artista. Não é qualquer um que consegue desbastar pedra recorrendo apenas aos músculos das nádegas. No entanto, se alguém conhece autor de tão fascinante façanha ou tenho conhecimento de tal acto por favor não me contacte nem envie vídeos ou imagens exemplificativas.

Quando me refiro que apela à imagem, estou a falar de quem possa declamar tal prosa. Sim, qualquer outro provérbio, frase batida ou expressão mais ou menos comum podem ser ditos por toda a gente. Agora isto não é qualquer um que o diz. Esse direito está reservado a velhas de buço e tasqueiros de abdómen desenvolvido. A quem não tem os dentes todos e pouco se importa com isso. A quem berra em vez de falar. É o grito de quem sente que está a ser enganado. De quem sabe que mais vale acabar a conversa porque dali já não se vai a lado nenhum. Gente que diz “Esses senhores da politica” e que acha que uma pessoa é mais que si mesmo apenas por ter um Dr. ou um Eng. antes do nome. Gente simples mas que de parva não tem nada. Apenas um aspecto menos polido. Mas que demonstra que é pessoa e que existe. Que não admite que o rebaixem. É um choro disfarçado de piada. De palavras pobres mas muito sentidas.

Vou mas é o caralho! Apanha um táxi ou vai a pé. Que raio de mania é esta de ir levar ou buscar pessoas ao aeroporto? O que é que tem o aeroporto diferente dos outros sítios? Se alguém nos pedir para levar a Algés ou aos Olivais a resposta é imediata. “Vai tu! Tens perninhas não tens? Então vai.”. No entanto, se o destino fosse o aeroporto sentíamo-nos obrigados a transportar essa pessoa. Fica mal recusar uma boleia nesta situação. Podem-se perder amizades por causa disto. É-se mal visto socialmente por não levar alguém ao aeroporto. Por outro lado, se levarmos alguém a Algés, a pedido, às cinco da manhã, ficamos conhecidos pura e simplesmente como o Otário.

A questão do horário é fundamental. As idas ao aeroporto são feitas nas horas mais impróprias. Ele é às cinco da manhã, é à hora do almoço quando no restaurante em frente ao nosso trabalho é dia de cozido, às sete da manhã num dia de Inverno. Quem pede boleia para o aeroporto deve pensar que os outros não têm vida própria. Ou pior, que são seus lacaios, ao bom estilo medieval.

Ninguém se lembra de apanhar um táxi? Isso não, nem pensar. Sai caro como tudo. Ainda por cima é acrescido das taxas de bagagem e de deslocação a casa. Fica um balúrdio. Muito bem, belo argumento. E a mim, quem é que me paga a gasolina, o desgaste do carro, os anos de vida que perco no trânsito e as horas de sono que tive de abandonar para me levantar a uma hora em que me devia era estar a deitar?

Outra. O estacionar. Como todos sabem o aeroporto não é propriamente o sítio mais fácil de estacionar. “Claro que é. Tem montes de parques.” dirão alguns. Claramente quem invoca este argumento nunca teve de arrotar com a tarifa de uma hora e meia de estacionamento num parque de um aeroporto. Deve ser o parque mais caro do mundo. Até me admira como é que não está no Guinness já que ligamos tanto a essa merda.

E o tempo que se perde. É uma vida primeiro que nos despachemos de tal frete. Se vamos buscar alguém são os atrasos. Nunca ninguém está despachado à hora que disse. Há sempre qualquer merda que atrasa tudo. Um passageiro que vinha doente, a validade dos documentos ou o irritante hábito de implicar por levarmos uma anã paraguaia na mala de viagem. Seja lá pelo que for, com todos os procedimentos envolvidos, ficamos com a sensação que é mais fácil um orangotango parir uma vaca que a pessoa que esperarmos saia daquela maldita porta.

Se vamos levar alguém temos de ficar lá à espera não vá a pessoa perder-se. Perder-se no sítio com mais indicações à face da terra. Ele é altifalantes, quadros de néon a piscar, pessoal técnico por todo o lado, balcões em cada esquina e placards electrónicos actualizados permanentemente. “Mas não é só isso, é para a pessoa não se sentir sozinha”. Estão a gozar comigo? Aquilo é um aeroporto, está lá montes de gente. Sozinho sinto-me eu, que não vou para as Seychelles e tenho que fazer a segunda circular toda e são sete da manhã. Vão-se foder todos e o aeroporto também.

Sábado passado estava a olhar para a televisão a seguir ao almoço. Só não regurgitei porque já estou habituado a passarem imagens chocantes e nojentas no ecrã à hora da refeição. A razão da minha agonia chama-se Alta Definição. O Só Visto da SIC. Um programa que consiste em elevar ao estatuto de seres divinos pessoas que a única coisa que têm a mais que qualquer um de nós é uma mascara de base na cara.

A razão porque me irritam tanto este tipo de formatos televisivos é porque eles são um espelho de nós próprios. Um monte de tretas e actores da nossa própria existência. E então quando nos pomos a fazer retrospectivas daquilo que pensamos que foi a nossa vida atingimos niveis de treta abismais.

Qualquer convidado que vai a um programa destes teve uma vida absolutamente extraordinária. Origens humildes, dificuldades imensas que apenas o fortaleceram, uma família e um grupo de amigos maravilhosos, uma força de vontade soberba e um talento precoce para as mais variadas áreas. Devido a tudo isto a conversa acaba por ser algo do género:

“A minha família? O meu foi uma pessoa fantástica, um carácter forte que sempre me fez compreender a importância do trabalho. A minha mãe tem um coração do tamanho do mundo, um ser adorável. A minha irmã é muito inteligente, está em Washington a tirar um pós-doutoramento em física-nuclear-quântica-avançada-técnica-térmica-evolutiva. Para além disso, é o meu anjo da guarda, alguém que sempre esteve ao meu lado e me aconselhou nos momentos mais sensíveis. O meu irmão ainda hoje é o meu melhor amigo, um companheiro para a vida. Trabalha em Oslo e coordena a Academia Nobel.”

Mas que grande treta. Eu gostava que um dia fosse lá alguém que tivesse um pingo de honestidade. E que retratasse a vida como realmente é. Qualquer coisa mais parecida com isto:

“A minha família? O meu pai foi uma besta. Um bêbado incorrigível, que nos batia pelo simples facto de estarmos a respirar. Passava o dia em tascas a malhar copos pois era a única coisa que sabia fazer. A minha mãe é uma besta. Uma trombuda de primeira que nunca me deu um carinho. Aliás, nunca me lembro dela alguma vez ter sorrido a não ser no dia em que sai de casa. A minha irmã é puta, uma vaca de primeira. Deve ter rodado a escola inteira antes de ter acabado o segundo período do sétimo ano. Aliás, acho que já antes de qualquer período já ela andava a malhar a torto e a direito. O meu irmão está bem. Está preso. Finalmente encontrou um lugar onde se sente bem e pode chamar casa.” Ai como era bonito ouvir alguém assim. Mas a verdade é tão pouco popular por estes lados.

Já imaginaram o que seria ter como carro de serviço uma ambulância? Deve ser espectacular. Só pode. Claro que não estou a falar no sentido tradicional. Ninguém aqui está interessado em levar doentes moribundos nem grávidas prestes a parir até qualquer hospital infestado de gripe A. Nada disso. O que seria deveras interessante, era, tendo à nossa total disposição todas as regalias do veículo em questão, poder conduzi-lo com total liberdade como se de uma emergência médica assim se tratasse. Visualizemos.

Oito da manhã, subúrbios de Lisboa. Objectivo: Lune. Nada disso. Bem mais difícil. A lua é para meninos. Chegar ao trabalho, no centro de Lisboa, com estacionamento à porta, num abrir e fechar d’olhos e sem passar pelo tormento do pára-arranca é que se apresenta como uma tarefa Herculeana. Como concretizar esta utopia? Entremos a bordo de uma ambulância.

Ainda nem saímos de casa e já as sirenes tocam desenfreadamente como se do fim do mundo assim se tratasse. Aceleração, sempre a fundo. Ai de quem não se desvie. Aquilo é luzes, é som é movimento. Parece uma peça do Lá Féria mas para homens. O transito abre-se à nossa frente melhor que o Mar Vermelho para Moisés. Nem sinais vermelhos nos fazem abrandar. Num instante chegamos ao destino. Só falta estacionar. Simples, é só chegar à porta e puxar o travão de mão. Mas alguém vai mandar rebocar uma ambulância?

Outra vantagem bastante obvia é a questão do álcool. A polícia nunca irá parar um veículo em urgência. Como tal, é perfeitamente plausível andar a conduzir completamente bêbado todo o dia, a toda a hora e a todo o momento. Mesmo que tenhamos uma distracção alguém há-de se desviar. Pudera, vamos em urgência.

E se algum acidente acontecer? Que se foda. O carro nem é nosso. Não se esqueçam que é de serviço. E os problemas que podem advir de termos danificado um bem da empresa? Mais uma vez…que se foda. Se alguma duvida surgir podemos sempre alegar que íamos em urgência. E era verdade. Já antes de darmos à chave íamos em urgência. Não é por acaso que estamos numa ambulância.