Já sei que não gostam do Woody Allen. Ninguém gosta. Já ouvi isso mil vezes. Eu gosto e quero é que o resto se foda. Eu também não vos impeço de gostarem do Jackie Chan, do Martin Lawrance e dos Coldplay, por isso escusam de me repetir a ladainha que já ouvi mais de mil vezes. Chamem-me intelectual e todo o tipo de insultos previsíveis neste momento. Já sabem do que se vai falar nas linhas seguintes, se não gostam ainda vão a tempo de mudar. Tenho a certeza que se ligarem a televisão deve estar a dar “O Preço Certo” ou uma qualquer reposição de “Os Malucos do Riso”.

Após este pequeno apontamento (e de dois Valdispert) podemos finalmente seguir para aquilo que tratamos hoje. Vi recentemente Whatever Works (em português Tudo Pode Dar Certo) escrito e realizado por quem imaginam. Neste filme Woody Allen aborda a junção de dois temas, o Amor e o Acaso. Não é a primeira vez que o faz. Por exemplo, em Match Point a imprevisibilidade daquilo que nos rodeia é o tema central do filme e em Maridos E Mulheres a dinâmica e química entre casais e aquilo que os forma é o corpo de toda a acção. Mas agora, talvez mais que nunca, centra-se nestas duas temáticas e faz disso um grande filme, pura e simplesmente.

A personagem principal é interpretada por um dos mais brilhantes comediantes dos últimos cinquenta anos, Larry David. Um aparte. Para quem não faz ideia de quem é esta alma está em boa altura de ir pesquisar. Vão achar muito curioso ter sido ele quem escrevia os textos de uma das mais populares séries de todos os tempos. Mas voltemos ao filme. Larry David nem representa, pura e simplesmente aparece e é a pessoa indicada para tal. Um desiludido, intragável e descrente ser, que é humano apesar de não se identificar com a espécie, vê o seu mundo sem sentido dar as mais imprevisíveis voltas sem que o propósito alguma vez se instale. Mas ao fim e ao cabo isso também não o parece incomodar. Porque como ele diz, o que quer que funcione serve perfeitamente.

E aqui fica mais uma sugestão cinematográfica que-ninguém-vai-ver-porque-é-do-Woody-Allen. Mas que seria excelente para todos aqueles que vivem na ilusão que controlam as suas próprias vidas e desprezam a importância da sorte e do azar nas mesmas. Este filme é uma brilhante análise existencial a transbordar de sarcasmo e de inteligência. Que para além de entreter o espectador também o faz ponderar sobre a sua patética mas muito válida existência. Agora…onde é que pus os Valdispert?...


Entro, a luz perde os meus passos sobre o olhar. Atento, respiro e movo-me sobre o chão fixo, pregado às tábuas do meu caixão. Passos curtos de análise, olhar atento e certeiro. Serpenteio, focado e consciente de cada sopro da pessoa que cresce em mim. Sobrevoo o campo de batalha, os vultos movem-se, estudam-se, aguardando pelo momento exacto. A tensão cresce. É o agora. Único na sua espontaneidade, singular em todas as suas formas, sublime e efémero como todos os outros, áspero, duro e asfixiante. Névoa dos passos perdidos. Confronto de mim comigo mesmo. Sinto o embate da minha alma sobre os pilares da minha existência. Morte e vida num só. Presente mais que perfeito prestes a diluir-se no todo que faz um registo.

Sobe, a alma intensifica-se, sobrepõe-se à imagem de si mesmo. Agora sou quem apareço. O verdadeiro, o que brota em mim e por mim. Respiro fundo e abrando o passo. Endireito as costas e tomo posição. O olhar aterrador de quem nasceu para viver e morrer. Pé ante pé pelo meio do ringue. O golpe de uma vida. O mais brilhante dos momentos. Assustador até para quem o desfere. O desconhecimento da sua origem invoca a presença de um ser mais alto. O retorno da imagem perdida. Do ser de quem me tinha separado. O contemplar da visão de Deus. O menino fez-se homem. O nascer fez-se ser. A essência assentou finalmente sobre a existência.

Choro. Descarga emocional. Sento-me. Acendo um cigarro no frenético ritmo da vida. As lágrimas correm-me pela cara ao som do meu desabafo. Os anjos sopram os seus metais. O campo de batalha volta a dar uso ao seu nome. Acção. Embate após embate, cada vez mais duro a cada momento. Frenético, violento e impensável. Destruição de todos os muros e de todas as barreiras. Dependo apenas de mim mesmo. Sou só eu. Quem luta, quem vive. Eu e apenas eu. Sem depender de ninguém. Para o melhor e para o pior.

Já cansado aproximo-me do centro do ringue. Golpes atrás de golpes provocam a primeira queda. Vejo o seu corpo desesperado deitado no chão. A minha face é a mesma. Nada me faz mudar. O ser que brota de mim é a besta da minha essência. Domada por mim e para mim. Eu sou eu. A aparição de mim mesmo. Quem olha do chão é o meu reflexo. A outra face da mesma moeda. Somos um, somos tudo. Indefiníveis e mutáveis.

Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente IV"