Quando perguntaram a Voltaire como era a sua relação com Deus respondeu

- Cumprimentamo-nos mas não nos falamos.

E julgo que, pela minha parte, não ando longe disso, dado haver coisas que me parecem tão injustas. Fui menino de coro e a igreja assustava-me, grande, solene, cheia de mistérios e correntes de ar, que me faziam aparentar a religião a um sítio ventoso de onde inclinadas por brisas contraditórias, os reposteiros, um pouco gastos, ondulavam constantemente, os bancos, desconfortáveis, magoavam-me as costas. Muitas senhoras levavam almofadas para os joelhos e os homens, ao endireitarem-se, sacudiam o pó das calças, o que me levava a pensar que Deus não era assim muito asseado ou então contratara uma mulher-a-dias incompetente. A minha mãe era muito melhor na escolha do pessoal, e esta falha divina confundia-me. O facto de Deus ser um patrão negligente afastava-me dele. O sacristão, por exemplo, a andava por ali, a espanejar os mártires dos altares com uma vassoura preguiçosa, infectando as feridas de São Roque que exigiam água oxigenada em lugar do piaçaba, e não havia santo que não usasse sandálias e não tivesse, pelo menos, um dos dedos do pé em fanicos. Sandálias horríveis de turista holandês e túnicas desbotadas, mostrando-me que o céu era um sítio a meio caminho entre a praia da Cruz Quebrada e um parque de campismo pobre, onde os bem-aventurados comiam conserva e enchiam tudo de cascas. O lado suburbano de Deus desagradava-me e o seu retrato, no livrinho do catecismo, ampliava o desagrado: um senhor hirsuto, empoleirado numa nuvem e segurando relâmpagos na mão como os electricistas, ao qual ninguém, com um bocadinho de senso, abriria a porta se o encontrasse no capacho. Era impossível imaginá-lo na sala com a minha família: as visitas a entrarem numa revoada de beijos efusivos, a darem com aquele vagabundo desleixado, o embaraço do meu pai.

- Apresento-lhe Deus, senhora dona Ângela.

O vagabundo a erguer-se da nuvem num assomo de delicadeza inesperada, a estender uma palma imensa de unhas duvidosas que obrigavam as visitas a limparem-se disfarçadamente ao lenço, a passarem a tarde na companhia de uma criatura esquisita que em vez de falar debitava profecias numa linguagem labiríntica, que se gabava de ter morto o próprio filho, se despedia.

- Até amanhã se eu quiser.

Depois de nos constipar a todos com as tais correntes de ar traiçoeiras, e em lugar do alpendre atravessar o tecto para se ir embora, cavalgando a sua nuvem de gesso e entortando-nos o lustre. A minha mãe servia o chá a desculpar-se e a desculpá-lo.

- Coitado, é da idade, já tem tantos mil anos.

As visitas criticavam-lhe a roupa e o desalinho, sugeriam que se falasse ao senhor prior numa colecta para lhe arranjar pelo Natal um fatinho decente, o prior, ainda que subserviente aos ricos piedosos, argumentava.

- Gosta de gafanhotos e mel silvestre, o que se lhe há-de fazer.

E porque quem come gafanhotos não regula bem da caixa dos pirolitos sugeria-se o internamento num lar, com empregadas vigorosas e pouco atreitas a gripes, que servissem a Deus uma sopinha com bastantes couves e alguma carne [...] lhe retirassem a poeira, que a vassoura do sacristão ali deixara, com um duche eficaz, e o pusessem a dormir entre lençóis lavados e sem nenhuma garrafa por perto, a induzi-lo a um novo chorrilho de profecias, sabendo-se, conforme se sabe, que o vinho leva à mania das grandezas e aos discursos pomposos. Um Deus impecável, de cheviote, sem intervalo de pele entre a calça e a peúga quando cruzasse a perna, capaz de um jeitinho no bridge se faltasse um parceiro, de nuvem pirosa substituída por uma poltrona de orelhas, achando os gafanhotos péssimos para a digestão e preferindo ao mel silvestre uma compota caseira de confiança. Alguém, em suma, a quem se pudesse abrir a porta ao encontrá-lo no capacho.

- Faça favor, Deus.

E apresentar às visitas como um parente decrépito mas digno, em lugar de o recambiar para a cozinha.

- Tenha paciência.

A comer com as criadas, depois de poisar o seu feixe de relâmpagos nos joelhos como um guarda-chuva a que faltassem varetas.


António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas, 1ª edição, Lisboa

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